postado por : UENES GOMES 19 de fev. de 2014

O texto que compartilho nesta matéria é da gastrônoma, Maria Lectícia Cavalcanti, uma pernambucana que dedica seus estudos às receitas da cozinha de Pernambuco. Lectícia tem suas fontes na obra de Gilberto Freyre. Mas deixo para que você possa degustar esse assunto lendo a matéria por completo.

Engenho-bangüê em funcionamento na década de 1950 (Engenho Espadas, Pernambuco)
Assim, com essa grafia, Gilberto Freyre deu título a seu livro, em 1939. E escrever sobre o tema, como ele próprio reconheceu, foi mesmo um “ato de coragem”. Que a crítica, conservadora, simplesmente não compreendia como um intelectual de sua dimensão perdia tempo com receitas de doces e bolos, utensílios de cozinha e papel de seda recortado usado para decorar esses bolos e esses doces. Mas ele não se incomodou; sobretudo porque pressentia que tudo aquilo acabaria tendo enorme importância, no futuro que viria.
Começou então a catalogar, cuidadosamente, receitas que chamou “de pedigree – que têm história, que têm passado”. Tanto as aristocráticas, nascidas nas casas-grandes; quanto as de tabuleiro, que se viam nas ruas. De todos os tipos. Com sabor de pecado – beijos, suspiros, ciúmes, baba-de-moça, arrufos-de sinhá, bolo dos namorados, colchão de noiva, engorda-marido, fatias paridas. Doces criados por freiras – manjar-do-céu, bolo divino, papos-de-anjo. Para lembrar fatos históricos – treze de maio, cabano, legalista, republicano. Com nomes das famílias que os criaram – Cavalcanti, Souza Leão. Dos engenhos onde foram concebidas – Noruega, Guararapes, São Bartolomeu. E nome de gente – dona Dondom, dr. Constancio, dr. Gerôncio, Luiz Felipe, Tia Sinhá.
Mais os sabores das festas – Carnaval, Semana Santa, São João, Natal. Sem esquecer xaropes e chás: de flor de melancia (para dor dos rins), de mastruço (gripe), de capim santo (fígado), de cidreira (tosse), de casca de catuaba (impotência).
É através dessas receitas que Gilberto Freyre nos leva de volta à origem da cana de açúcar, à geografia dos primeiros engenhos e ao ambiente das casas-grandes. O açúcar, só para lembrar, chegou à Península Ibérica por mãos mouras. No começo privilégio de nobres e abastados, era então vendido em farmácias para curar doenças respiratórias, cicatrizar feridas, acalmar o espírito. Depois ganhou prestígio ainda maior, quando passou a ser usado na preparação de pratos. E logo se viu que ali “estava uma fonte de riqueza quase igual ao ouro”.
Produzir açúcar passou a ser sonho de reis. Difícil de realizar, na Europa, por exigir solo rico, úmido e, o que quase não havia por lá, especialmente quente. Em busca de fumo e terra para plantar cana, os portugueses chegaram por aqui.
Oficialmente, as primeiras mudas desembarcaram em 1532 – trazidas por Martim Afonso de Souza, para a capitania de São Vicente; e em 1535, por Duarte Coelho Pereira, para a capitania de Pernambuco. Um sucesso; que “encontraram, nesse massapé, solo verdadeiramente ideal para sua floração”.
O primeiro engenho pernambucano completo foi instalado por Jerônimo de Albuquerque, cunhado de Duarte Coelho, no mesmo ano em que aqui chegaram. Era o “São Salvador”, depois conhecido como “Engenho Velho de Beberibe”. Aos poucos os engenhos foram tomando, nas várzeas dos rios, o lugar que era da Mata Atlântica. Dado se prestarem, magnificamente, “a moer as canas, a alagar as várzeas, a enverdecer os canaviais, a transportar o açúcar”.
Depois se espalharam por todo o Nordeste. Não sem custos. Logo se viu que as primeiras vítimas desses engenhos eram nossos índios. “O açúcar matou o índio”, registrou Gilberto Freyre. Por serem “incapazes e molengas” para esse duro trabalho no campo. Duarte Coelho então compreendera que “o homem necessário à lavoura da cana e ao fabrico do açúcar era o africano”. Assim nasceu, misturado à doçura branca do açúcar, a chaga amarga da nossa escravidão.
Mas essa adaptação a um cenário novo foi se fazendo aos poucos. As casas-grandes dos engenhos, por exemplo, não foram cópias perfeitas das casas portuguesas. Por conta do calor dos trópicos, as cozinhas ficaram longe das salas e dos quartos, fora de casa, em um puxado. “Debaixo dos cajueiros, à sombra dos coqueiros com o canavial sempre ao lado a fornecer açúcar em abundância”. Era um reino sem homens. “As senhoras portuguesas dominaram aquelas cozinhas”. Mas, sem a ajuda de cozinheiras negras, não “se explica o desenvolvimento de uma arte de doce… exigindo tanto vagar, tanto lazer, tanta demora, tanto trabalho no preparo”.
As receitas, daquele tempo, quase todas, permanecem intactas. Como se o tempo não tivesse passado. Porque, numa “velha receita de doce ou de bolo há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com as modas”. E é graças à ousadia, à persistência e ao gênio de Gilberto Freyre que hoje, através dessas receitas, podemos compreender melhor nossa história, nossa alma e nosso destino.
RECEITA: DOCE DE MAMÃO RASPADO

Ingredientes:
1 kg de mamão verde
700 g de açúcar
Cravos-da-índia

Preparo:

- Descasque, tire os caroços e raspe o mamão (na parte mais grossa do ralador). Ferva ligeiramente e escorra. 
- Leve ao fogo mamão, açúcar, cravo e um pouco de água. Deixe no fogo até que o mamão esteja cozido e a calda consistente (quando levantar a calda com uma colher de pau e ela escorrer em fios finos).

Maria Lectícia é Pesquisadora. Escreve para Revista Gosto e Caderno Sabores (Folha de Pernambuco). Livros: O negro açúcar, História dos sabores pernambucanos, Gilberto Freyre e as aventuras do paladar, entre outros.

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